Em muitas ocasiões sentamos diante da televisão e, de repente, entre novelas (ou não...), assistimos ao noticiário que diariamente revela mortes, algumas delas ocorridas no trânsito e, dentre estas, algumas marcadas pela presença de alguém sob efeito de álcool (possível embriaguez).
Surge a dúvida: foi doloso ou culposo?
Não raro os noticiários informam: o motorista responderá por homicídio doloso, aquele em que há intenção de matar; ou: o motorista responderá por homicídio culposo, aquele em que não há intenção de matar.
Vamos compreender melhor o que crime doloso e crime culposo.
O dolo e a culpa, segundo a Teoria Finalista do Delito, estão alojados na CONDUTA, elemento integrante do FATO TÍPICO
[1].
Conduta abordada aqui se refere àquela tida como penalmente relevante, isto é, a que delineia o componente estrutural do crime. Associada à ideia de comportamento, a conduta pode ser exteriorizada através de uma ação ou omissão. Não somente isso, para ter relevância penal, exige que aquela exteriorização seja movida pela vontade dirigida a uma finalidade (Teoria Finalista da Ação).
Vejamos alguns conceitos de conduta que favorecem a apreensão do tema:
“É a ação ou omissão humana consciente e dirigida a determinada finalidade”
[2].
“Características da conduta: o conceito de conduta penalmente relevante permite (ou exige) afirmar: (a) não há crime sem conduta; (b) a conduta pertence ao fato típico (o conceito de conduta em Direito Penal, de acordo com nossa opinião, conta com real sentido quando ela é enfocada coo ‘conduta típica’); (c) a conduta penalmente relevante é a ‘humana’ (praticada pelo ser humano) e (d) a conduta só é relevante em Direito Penal quando voluntária (em outras palavras: o ato involuntário não preenche o requisito da conduta penalmente relevante)”
[3].
“(...) conduta penalmente relevante é toda ação ou omissão humana, consciente e voluntária, dolosa ou culposa, voltada a uma finalidade, típica ou não, mas que produz ou tenta produzir um resultado previsto na lei penal como crime”
[4].
Consideradas estas nuances, temos que a conduta penalmente relevante possui vontade, consciência, finalidade e exteriorização.
Sobre o elemento vontade, continente da voluntariedade do comportamento, é preciso frisar que ela indica uma atuação decorrente de uma decisão do agente e não um simples resultado mecânico
[5][6].
Não se pode confundir VONTADE com FINALIDADE. Enquanto a vontade está associada à ausência de constrangimento físico ou outra condição incapacitante da expressão volitiva; a finalidade se constitui na direção da conduta, isto é, aquilo ou onde se deseja chegar (seja este fim um resultado caracterizador de um crime, ou não)
[7].
Daí o cuidado ao se interpretar a assertiva jornalística (“homicídio doloso, aquele em que há intenção de matar; homicídio culposo, aquele em que não há intenção de matar”). Tanto em um caso, como no outro, a conduta é voluntária (senão não haveria crime, já que a vontade é elemento essencial da conduta). A questão é a finalidade, aquilo que se deseja alcançar.
É a finalidade o traço distintivo marcante entre crime doloso e crime culposo.
No crime doloso a finalidade perseguida pela vontade é necessariamente um resultado típico (leia-se: previsto na lei como crime). Embora incompleta esta perspectiva, ela nos serve de ponto de partida.
Conquanto o Código Penal vigente não defina o que é DOLO, o seu art. 18, I, conceitua crime doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.
O dolo, sob a teoria da vontade, está intrinsecamente associado ao “querer o resultado”, havendo perfeita correspondência entre a vontade e a finalidade. O querer e o resultado estão perfeitamente identificados
[8]. É exatamente o que se colhe da expressão “quando o agente quis o resultado”, onde se evidenciou a figura do “dolo direto”.
Por outro lado, referindo-se a “quando o agente assumiu o risco do resultado”, o legislador utilizou-se da Teoria do Assentimento, na qual “requer a previsão ou representação do resultado como certo, provável ou possível, não exigindo que o sujeito queira produzi-lo”
[9].
Neste particular (assumir o risco da produção do resultado), temos a figura do “DOLO EVENTUAL”. A vontade do agente está apontada para outro resultado e não para aquele típico (previsto na definição legal do crime), contudo o agente, mesmo certo da possibilidade de sua ocorrência, assume este risco e age.
Aqui há indiferença do agente em relação ao bem jurídico
[10]. Lembrando música que esteve em uma dessas modas, “Tô nem aí”. Como bem lecionam Zaffaroni e Pierangeli: “é a conduta daquele que diz a sim mesmo ‘que aguente’, ‘que se incomode’, ‘se acontecer, azar’, ‘não me importo’”
[11].
Exemplos onde é possível haver de dolo eventual: roleta russa.
Evidente que não é possível adentrar à mente da pessoa para se identificar se agiu ou não com dolo eventual. A descoberta do dolo eventual, na prática, será uma questão de prova, ou seja, depende das circunstâncias de fato apuradas processualmente e que demonstrem a previsão e a assunção do resultado
[12].
Diferente do crime doloso, no crime culposo a vontade do agente não se direciona a um resultado típico. Aqui o agente causa o resultado por falta de cuidado (Código Penal, art. 18, II: “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”).
Inserido no contexto do crime culposo temos duas modalidades de culpa. Uma, chamada de culpa inconsciente (ou sem previsão), marcada pela imprevisão do resultado (o agente não antecipa mentalmente o resultado) – o resultado é previsível, mas o agente não prevê; e outra, chamada de culpa consciente (com previsão), na qual o agente prevê o resultado e mesmo assim age baseado em habilidade pessoal certo de que o resultado não ocorrerá
[13].
Exemplo de culpa consciente: o atirador de facas.
Qual a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente?
No dolo eventual o agente prevê o resultado e age por “total indiferença ao bem jurídico”. Na formula clássica de Frank: “Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir”. Na culpa consciente, apesar de também prever o resultado, o agente atua na certeza de que não ocorrerá, confiando em sua habilidade.
Feita esta digressão sobre o crime doloso e o crime culposo, realçando os institutos do dolo e da culpa, vamos ao tema que inquieta muitas mentes: o crime de homicídio na condução de veículo automotor sob efeito de embriaguez é doloso ou culposo?
É muito comum divulgar a embriaguez como sinônimo de dolo eventual no caso dos eventos ocorridos no trânsito. Trata-se de uma colocação apressada.
Significa que o estado de embriaguez, por si só, não é suficiente para uma presunção automática de dolo eventual.
O dolo eventual, remarcando o que foi dito anteriormente, deve ser extraído das circunstâncias concretas que evidenciem a previsão do resultado e a sua assunção, conforme tem se posicionado o Superior Tribunal de Justiça:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME DE HOMICÍDIO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. RECONHECIMENTO DO DOLO EVENTUAL. REVISÃO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. 1. Nos termos da orientação firmada pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, sendo os crimes de trânsito, em regra, culposos, impõe-se a indicação de elementos concretos que evidenciem a assunção do risco de produzir o resultado, o dolo eventual. 2. Na hipótese, o Tribunal a quo entendeu que o contexto fático evidenciaria a culpa consciente, por se tratar de motorista profissional que confiara em suas habilidades para impedir o resultado. 3. A reversão do acórdão demandaria revolvimento fático-probatório, o que encontra óbice na Súmula 7 do STJ, mormente porque somente quando houver fundada dúvida, ou seja, elementos indiciários conflitantes acerca da existência de dolo, a divergência deve ser dirimida pelo Conselho de Sentença (REsp 1.327.087/DF, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEXTA TURMA, julgado em 10/09/2013, DJe 11/11/2013). 4. Agravo regimental improvido. (AgRg no REsp 1041830/MG, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 13/10/2015, DJe 03/11/2015)
HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO SIMPLES E LESÃO CORPORAL LEVE NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO CABIMENTO. VERIFICAÇÃO DE EVENTUAL COAÇÃO ILEGAL À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO. VIABILIDADE. DOLO EVENTUAL. PRETENSÃO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA A FORMA CULPOSA. PRONÚNCIA QUE ADMITIU A ACUSAÇÃO DO PACIENTE, QUE, EM TESE, DIRIGINDO SOB A INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL E EM ALTA VELOCIDADE NA CONTRAMÃO DE DIREÇÃO, VEIO A OCASIONAR A MORTE DE DUAS PESSOAS E LESÃO CORPORAL EM OUTRA. CIRCUNSTÂNCIAS DO FATO CAPAZES DE DEMONSTRAR A OCORRÊNCIA DO DOLO EVENTUAL. OFENSA À INTEGRIDADE DAS VÍTIMAS QUE FAZ PARTE DO RESULTADO ASSUMIDO PELO AGENTE. ALCANÇAR CONCLUSÃO INVERSA. REEXAME DE PROVAS. TAREFA RESERVADA AO CONSELHO DE SENTENÇA. 1. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, em recentes decisões, não admitem mais a utilização do habeas corpus como sucedâneo do meio processual adequado, seja o recurso próprio ou mesmo a revisão criminal, salvo em situações excepcionais. 2. O Superior Tribunal de Justiça tem decidido que o dolo eventual não é extraído da "mente do agente", mas das circunstâncias do fato, de modo que a ocorrência das duas mortes e da lesão corporal, ou seja, a ofensa à integridade física de três vítimas, faz parte do resultado assumido pelo agente, que, sob a influência de álcool e em alta velocidade, trafegou na contramão de direção. 3. No caso, tais elementos foram bem delineados na denúncia, demonstrando-se a antevisão do acusado a respeito do resultado assumido, sendo capaz, portanto, de justificar a imputação. 4. Alcançar conclusão inversa da estampada pelas instâncias ordinárias, além de demandar reexame de provas, é tarefa que compete ao Conselho de Sentença, quando do julgamento do paciente pelo Tribunal do Júri. Precedentes. 5. Writ não conhecido. (HC 301.295/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 28/04/2015, DJe 13/05/2015)
Vejam, os dois casos trazidos acima demonstram crimes de homicídio e lesões corporais na condução de veículo automotor com embriaguez ao volante, entretanto com soluções diferentes. Em um (o primeiro: AgRg no REsp 1041830/MG), resultou em culpa consciente, pois as circunstâncias concretas apuradas demonstraram tratar-se de “motorista profissional que confiara em suas habilidades para impedir o resultado”; no outro (o segundo: HC 301.295/SP), resultou em dolo eventual, tendo em vista “a ocorrência das duas mortes e da lesão corporal, ou seja, a ofensa à integridade física de três vítimas, faz parte do resultado assumido pelo agente, que, sob a influência de álcool e em alta velocidade, trafegou na contramão de direção”.
Percebe-se, portanto, que o crime de homicídio na condução de veículo automotor sob efeito de embriaguez pode ser doloso ou culposo, dependerá das circunstâncias concretas apuradas processualmente.
Esta cautela é fundamental, a fim de dar a cada situação a medida e relevo que realmente merece, possibilitando enquadrar o irresponsável como tal e aplicar ao desatento as sanções que a lei lhe reserva.
Agora, talvez você veja os noticiários (entre novelas ou não...) com outros olhos.
Até o próximo texto!!!
Abraços!!!
[1] Na linha da Teoria Finalista do Delito de Hans Welzel (em que pese divergência reinantes sobre sua melhor interpretação), o FATO TÍPICO, enquanto elemento do crime, pode ser decomposto em 04 elementos: conduta, resultado, nexo causal e tipicidade. Há ainda doutrinadores acrescentam a imputação objetiva.
[2] JESUS, Damásio e. de. In Julio Fabbrini Mirabete. Manual de Direito Penal. 17. ed. São Paulo : Atlas, 2001, p. 104.
[3] GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antônio García-Pablos de; CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal : parte geral, 2 ed. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 177.
[4] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, vol. 1, Parte Geral, Ed. Saraiva, 2003, p.117.
[5] Julio Fabbrini Mirabete. Manual de Direito Penal. 17. ed. São Paulo : Atlas, 2001, p. 105.
[6] Apesar de o saudoso Franz von Liszt associar-se à Teoria naturalista ou causal da ação, suas palavras servem-nos aqui para realçar, sob sua óptica, o elemento vontade: “A voluntariedade na comissão ou na omissão não quer dizer livre-arbítrio no sentido metafísico (vide § 15, II) mas isenção de coação mecânica ou psicofísica. Não se dá ação por parte daquele que, em um ataque de convulsão, danifica objetos ou que, em razão de uma síncope, não pode cumprir seu dever; não se dá ação por parte de quem é coagido pelo pode físico de outrem a fazer ou deixar de fazer alguma coisa (Código Penal, art. 52)” (LISZT, Franz von. Tratado de Direito Penal Alemão, traduzido por José Higino Duarte Pereira, Tomo I – Campinas : Russel Editores, 2003, p. 220).
[7] “A vontade implica sempre uma finalidade, porque não se concebe que haja vontade de nada ou vontade para nada; a vontade sempre é vontade de algo, isto é, a vontade sempre tem um conteúdo, que é uma finalidade.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl. e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro : parte geral – 5 ed. ver. e atual. São Paulo – Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 393).
[8] “A teoria da vontade foi exposta de forma orgânica na obra de Carrara: ‘Dolo é a intenção mais ou menos perfeita de praticar um fato que se conhece contrário à lei’”. (JESUS, Damásio e. de. In Julio Fabbrini Mirabete. Manual de Direito Penal. 17. ed. São Paulo : Atlas, 2001, p. 287)
[9] JESUS, Damásio e. de. In Julio Fabbrini Mirabete. Manual de Direito Penal. 17. ed. São Paulo : Atlas, 2001, p. 288.
[10] “Dolo eventual: ocorre quando o agente representa o resultado como possível, assume o risco de produzir este resultado e ainda atua com total indiferença frente ao bem jurídico (representação+aceitação+indiferença)”. (GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antônio García-Pablos de; CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal : parte geral, 2 ed. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 254).
[11] Manual de direito penal brasileiro : parte geral – 5 ed. ver. e atual. São Paulo – Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 474.
[12] Vide AgRg no REsp 1043279/PR.
[13] “Culpa consciente: ocorre quando o agente prevê o resultado ofensivo (representado como possível), porém, tendo em conta seu conhecimento e/ou sua habilidade, confia sinceramente que não vai acontecer. Confia em sua habilidade (ou no seu conhecimento) para evitar o resultado ou conta com sincera confiança de que nada vai ocorrer em razão das circunstâncias concretas do fato”. (GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antônio García-Pablos de; CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal : parte geral, 2 ed. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 287).